– Estive em muitos
lugares, meu filho! – foi a reposta que o garoto ouviu de seu avô.
A pequena sala cheirava a
mofo, devido à umidade nas paredes de pedra e no chão de terra batida,
resultado de um longo período de chuvas que já durava quase três meses. O garoto
estava sentado num banquinho de madeira, olhos vidrados na expressão forte e
marcada por profundas rugas do velho Ellinord. Já se passara cerca de dez anos
desde que Artonnis vira seu avô pela última vez, tempo suficiente para
fazer-lhe esquecer sua fisionomia. Afinal, o garoto tinha apenas três anos de
idade quando Ellinord partira sem explicações nem previsão de retorno.
Foi uma decisão difícil.
Ellinord perdera a esposa um ano antes de partir para sua viagem, em uma
situação nem tanto incomum naquela região, mas que poderia ter sido evitada se
Ellinord estivesse em casa.
Ela havia sido atacada por um animal selvagem, talvez um
grande felino. Os dias se tornaram um martírio para aquele homem, mas não por
causa da falta da companheira ao seu lado. Mas porque ele sabia que havia um
significado mais profundo naquela situação toda, e por mais que se esforçasse,
não conseguia achá-lo.
– Temos um grande rebanho
agora, meu avô. Temos a vida que meu pai sempre sonhou para nós.
De sonhos o velho Ellinord
conhecia bem. Estivera por muito tempo atado a eles. Numa época já bem
distante, quando ainda vivia os agitados anos de sua juventude, aquele coração
sonhador havia imaginado uma fazenda como aquela, um rebanho como aquele, uma
mulher como a que perdera e um neto como Artonnis. Sonhos que sofriam profundas
modificações com o tempo, como se Ellinord fosse uma eterna criança, sem saber
ao certo o que realmente quer dos deuses.
Por um momento relembrou
os tempos já distantes, mergulhado em um sonho desperto, apreciando a expressão
jovial e cheia de vitalidade de seu neto. Lembrou-se de seus dias às margens do
Grande Lago, onde ia perder-se numa contemplação que durava, às vezes, quase o
dia inteiro. Lembrou das árvores gigantes de Erídion, do vento forte do cume do
Monte Dormain, das formações espetaculares das cavernas e, principalmente, do
sorriso da jovem Dália. Não poderia jamais esquecer a primeira vez que a viu,
solitária, passeando por entre as árvores às margens do lago.
– Meu pai disse que
teremos um moinho em breve.
“Um moinho!”, pensou
Ellinord. Que prazer enorme seria ter um bom moinho. Chegou a imaginá-lo
funcionando. Agora olhava fixamente para Artonnis com um meio sorriso no rosto.
Começou a imaginar seu neto trabalhando. “Ellendril deve ter muito orgulho
deste garoto”. Acabou por deixar que uma lágrima lhe escorresse pelo rosto.
– Sua benção, meu pai! –
disse Ellendril entrando na sala.
Ellinord limitou-se a
sorrir para o filho.
– Teremos colheita farta
este ano – prosseguiu ele. – Tenho bons homens para a colheita, as plantações
estão praticamente sem nenhum dano de insetos.
Não lembrava de ter um
filho tão cheio de vigor. Há muito tempo atrás, Ellendril era apenas um jovem
que passava pouco tempo longe da mãe. Tinha pouco interesse pelo mundo ao seu
redor; ficava por horas observando Dália em seus afazeres domésticos. De vez em
quando sua mãe lhe mandava realizar pequenas tarefas, que logo ele terminava
para voltar a observá-la. Ellinord se surpreendera com a força de seu filho na
ocasião da perda da mãe. Chegou mesmo a pensar que a qualquer momento Ellendril
explodiria de seu mutismo e iria extravasar, quem sabe de qual maneira, a dor
que sentia intimamente. Ao contrário, o filho suportara tudo de modo
irrepreensível, aos poucos tomando para si as responsabilidades da mãe.
– Não canse demais seu avô
com perguntas – disse Ellendril para o filho. – Vocês terão todo o tempo do
mundo para desfrutarem de boas conversas!
Todo o tempo do mundo era
o que o velho Ellinord mais sonhava naquele momento. A vida não havia sido
curta, nem tampouco houve época em que Ellinord desperdiçara tempo. Mas o
espírito daquele homem ainda agitava-se como se ele ainda tivesse dez vidas
inteiras para viver. “Quem me garante que não tenho?”, pensava ele. Mas
Ellinord sabia que sua vida já estava perto do fim.
– Como são as terras do
Sul, meu avô?
– São agora terras
inférteis – falou em voz pausada. – Não pode existir vida numa terra manchada
por sangue!
O olhar perdeu-se no
horizonte, vislumbrado através da janela que, no passado, servia de alimento ao
seu espírito, quando apreciava a paisagem de sua juventude. Após a morte de
Dália, por um breve período de tempo, viu-se cercado de expectativas frustradas
em relação à vida naquele lugar. Ellendril já era um homem feito, com mulher e
filho – não necessitaria de maiores explicações. Numa noite de fim de ano,
partiu sem rumo definido, enquanto todos dormiam. “Segui o brilho da estrela”.
E a estrela lhe guiou para as longínquas regiões do Sul, terras marcadas pelo
aço das espadas e pelo sangue de clãs rivais.
Tornou-se então um homem
totalmente desapegado à vida, sem raízes. Muitos dos que lhe conheceram naquela
região diziam que era um homem sem alma, e, por isso, não podia ser morto.
Ellinord conheceu a angústia da guerra, e com o tempo sua natureza sonhadora
extinguiu-se, sem, contudo, endurecer seu coração a ponto de perder sua
integridade. Era um homem de personalidade forte, e a crueldade da vida do Sul
naqueles tempos não lhe tirou a dignidade e o senso de justiça que lhe eram
característicos. Fatos narrados naquela região dão conta de um homem que, ao
chegar numa pequena vila na base do Monte Dormunno, totalmente devastada por
uma batalha, ajudou alguns prisioneiros inimigos a se curarem de uma doença
altamente contagiosa – semelhante à lepra – causada pelo contato com as fezes
de cães, que por sua vez haviam sido picados por um determinado inseto
peçonhento da região. Este homem também se arriscou a ser tomado como traidor
por isso. Mas, ao contrário, não havia ninguém que não reconhecesse o trabalho
puramente descompromissado daquele homem.
Aquele homem lutou como um
verdadeiro guerreiro durante os anos de guerra, mas não lutava com a espada,
lutava com o coração. Estava sempre entre os grupos em combate, e passava
longos períodos de tempo nos acampamentos tratando da epidemia crescente,
tentando salvar a vida de pessoas que, em sua concepção, deveriam retornar aos
seus lares e às suas famílias tão logo se desse o fim da guerra. Mas seu
trabalho era completamente infrutífero, tudo a sua volta conspirava contra ele.
Não havia chance de cura para a maioria dos doentes, e ainda, a guerra não
permitiria que todos aqueles que haviam se curado voltassem para casa.
Quando depois de anos a
guerra começou a perder força este homem voltou a sonhar. Primeiro em noites de
sono agitado, depois em momentos de conversas nas inúmeras vilas de refugiados
da região. Começou a sentir falta de casa, dos lugares fantásticos de
sua infância e juventude, do sorriso de seu neto, do som do vento de sua
terra-natal e de todas as pequenas coisas de sua vida lá no Norte.
– Leve seu avô para ver o
pôr-do-sol, Artonnis. – disse sorrindo Ellendril – Há anos que ele não respira
o ar de nossas terras nem aprecia o nosso crepúsculo.
Ellinord saiu de seus
pensamentos e sorriu para o filho com ternura. Artonnis levantou-se para levar
o avô. A peste do Sul efetuara transformações àquele homem, não só em seu
espírito, mas também em seu corpo. As duas pernas haviam sido amputadas e de
seus braços só lhe restava a metade do esquerdo. Tal procedimento poderia ter
evitado que a doença se alastrasse pelo resto do corpo, mas haviam órgãos
internos comprometidos.
Ellinord inspirou
profundamente – a paisagem lhe era imensamente confortadora. Artonnis já ia se retirando
para os últimos afazeres do dia quando seu avô chamou-lhe:
– Meu filho, preciso que
me prometas que jamais vai deixar de sonhar e de acreditar no que é certo, não
importa quantas barreiras apareçam em seu caminho!
Artonnis olhou
profundamente para o avô e respondeu sorrindo:
– Em nome de tudo quanto
exista de mais sagrado sobre está terra e além dela, eu lhe prometo que jamais
deixarei que meus sonhos pereçam!
Ellinord inspirou
novamente e perdeu-se na beleza do sol poente. Adormeceu junto com o cair da
noite e não mais acordou.
(escrito por Zephyrus, 1998)
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