sexta-feira, 16 de março de 2012

Pequena Crônica Medieval

– Estive em muitos lugares, meu filho! – foi a reposta que o garoto ouviu de seu avô.
A pequena sala cheirava a mofo, devido à umidade nas paredes de pedra e no chão de terra batida, resultado de um longo período de chuvas que já durava quase três meses. O garoto estava sentado num banquinho de madeira, olhos vidrados na expressão forte e marcada por profundas rugas do velho Ellinord. Já se passara cerca de dez anos desde que Artonnis vira seu avô pela última vez, tempo suficiente para fazer-lhe esquecer sua fisionomia. Afinal, o garoto tinha apenas três anos de idade quando Ellinord partira sem explicações nem previsão de retorno.
Foi uma decisão difícil. Ellinord perdera a esposa um ano antes de partir para sua viagem, em uma situação nem tanto incomum naquela região, mas que poderia ter sido evitada se Ellinord estivesse em casa. Ela havia sido atacada por um animal selvagem, talvez um grande felino. Os dias se tornaram um martírio para aquele homem, mas não por causa da falta da companheira ao seu lado. Mas porque ele sabia que havia um significado mais profundo naquela situação toda, e por mais que se esforçasse, não conseguia achá-lo.
– Temos um grande rebanho agora, meu avô. Temos a vida que meu pai sempre sonhou para nós.
De sonhos o velho Ellinord conhecia bem. Estivera por muito tempo atado a eles. Numa época já bem distante, quando ainda vivia os agitados anos de sua juventude, aquele coração sonhador havia imaginado uma fazenda como aquela, um rebanho como aquele, uma mulher como a que perdera e um neto como Artonnis. Sonhos que sofriam profundas modificações com o tempo, como se Ellinord fosse uma eterna criança, sem saber ao certo o que realmente quer dos deuses.
Por um momento relembrou os tempos já distantes, mergulhado em um sonho desperto, apreciando a expressão jovial e cheia de vitalidade de seu neto. Lembrou-se de seus dias às margens do Grande Lago, onde ia perder-se numa contemplação que durava, às vezes, quase o dia inteiro. Lembrou das árvores gigantes de Erídion, do vento forte do cume do Monte Dormain, das formações espetaculares das cavernas e, principalmente, do sorriso da jovem Dália. Não poderia jamais esquecer a primeira vez que a viu, solitária, passeando por entre as árvores às margens do lago.
– Meu pai disse que teremos um moinho em breve.
“Um moinho!”, pensou Ellinord. Que prazer enorme seria ter um bom moinho. Chegou a imaginá-lo funcionando. Agora olhava fixamente para Artonnis com um meio sorriso no rosto. Começou a imaginar seu neto trabalhando. “Ellendril deve ter muito orgulho deste garoto”. Acabou por deixar que uma lágrima lhe escorresse pelo rosto.
– Sua benção, meu pai! – disse Ellendril entrando na sala.
Ellinord limitou-se a sorrir para o filho.
– Teremos colheita farta este ano – prosseguiu ele. – Tenho bons homens para a colheita, as plantações estão praticamente sem nenhum dano de insetos.
Não lembrava de ter um filho tão cheio de vigor. Há muito tempo atrás, Ellendril era apenas um jovem que passava pouco tempo longe da mãe. Tinha pouco interesse pelo mundo ao seu redor; ficava por horas observando Dália em seus afazeres domésticos. De vez em quando sua mãe lhe mandava realizar pequenas tarefas, que logo ele terminava para voltar a observá-la. Ellinord se surpreendera com a força de seu filho na ocasião da perda da mãe. Chegou mesmo a pensar que a qualquer momento Ellendril explodiria de seu mutismo e iria extravasar, quem sabe de qual maneira, a dor que sentia intimamente. Ao contrário, o filho suportara tudo de modo irrepreensível, aos poucos tomando para si as responsabilidades da mãe.
– Não canse demais seu avô com perguntas – disse Ellendril para o filho. – Vocês terão todo o tempo do mundo para desfrutarem de boas conversas!
Todo o tempo do mundo era o que o velho Ellinord mais sonhava naquele momento. A vida não havia sido curta, nem tampouco houve época em que Ellinord desperdiçara tempo. Mas o espírito daquele homem ainda agitava-se como se ele ainda tivesse dez vidas inteiras para viver. “Quem me garante que não tenho?”, pensava ele. Mas Ellinord sabia que sua vida já estava perto do fim.
– Como são as terras do Sul, meu avô?
– São agora terras inférteis – falou em voz pausada. – Não pode existir vida numa terra manchada por sangue!
O olhar perdeu-se no horizonte, vislumbrado através da janela que, no passado, servia de alimento ao seu espírito, quando apreciava a paisagem de sua juventude. Após a morte de Dália, por um breve período de tempo, viu-se cercado de expectativas frustradas em relação à vida naquele lugar. Ellendril já era um homem feito, com mulher e filho – não necessitaria de maiores explicações. Numa noite de fim de ano, partiu sem rumo definido, enquanto todos dormiam. “Segui o brilho da estrela”. E a estrela lhe guiou para as longínquas regiões do Sul, terras marcadas pelo aço das espadas e pelo sangue de clãs rivais.
Tornou-se então um homem totalmente desapegado à vida, sem raízes. Muitos dos que lhe conheceram naquela região diziam que era um homem sem alma, e, por isso, não podia ser morto. Ellinord conheceu a angústia da guerra, e com o tempo sua natureza sonhadora extinguiu-se, sem, contudo, endurecer seu coração a ponto de perder sua integridade. Era um homem de personalidade forte, e a crueldade da vida do Sul naqueles tempos não lhe tirou a dignidade e o senso de justiça que lhe eram característicos. Fatos narrados naquela região dão conta de um homem que, ao chegar numa pequena vila na base do Monte Dormunno, totalmente devastada por uma batalha, ajudou alguns prisioneiros inimigos a se curarem de uma doença altamente contagiosa – semelhante à lepra – causada pelo contato com as fezes de cães, que por sua vez haviam sido picados por um determinado inseto peçonhento da região. Este homem também se arriscou a ser tomado como traidor por isso. Mas, ao contrário, não havia ninguém que não reconhecesse o trabalho puramente descompromissado daquele homem.
Aquele homem lutou como um verdadeiro guerreiro durante os anos de guerra, mas não lutava com a espada, lutava com o coração. Estava sempre entre os grupos em combate, e passava longos períodos de tempo nos acampamentos tratando da epidemia crescente, tentando salvar a vida de pessoas que, em sua concepção, deveriam retornar aos seus lares e às suas famílias tão logo se desse o fim da guerra. Mas seu trabalho era completamente infrutífero, tudo a sua volta conspirava contra ele. Não havia chance de cura para a maioria dos doentes, e ainda, a guerra não permitiria que todos aqueles que haviam se curado voltassem para casa.
Quando depois de anos a guerra começou a perder força este homem voltou a sonhar. Primeiro em noites de sono agitado, depois em momentos de conversas nas inúmeras vilas de refugiados da região. Começou a sentir falta de casa, dos lugares fantásticos de sua infância e juventude, do sorriso de seu neto, do som do vento de sua terra-natal e de todas as pequenas coisas de sua vida lá no Norte.
– Leve seu avô para ver o pôr-do-sol, Artonnis. – disse sorrindo Ellendril – Há anos que ele não respira o ar de nossas terras nem aprecia o nosso crepúsculo.
Ellinord saiu de seus pensamentos e sorriu para o filho com ternura. Artonnis levantou-se para levar o avô. A peste do Sul efetuara transformações àquele homem, não só em seu espírito, mas também em seu corpo. As duas pernas haviam sido amputadas e de seus braços só lhe restava a metade do esquerdo. Tal procedimento poderia ter evitado que a doença se alastrasse pelo resto do corpo, mas haviam órgãos internos comprometidos.
Ellinord inspirou profundamente – a paisagem lhe era imensamente confortadora. Artonnis já ia se retirando para os últimos afazeres do dia quando seu avô chamou-lhe:
– Meu filho, preciso que me prometas que jamais vai deixar de sonhar e de acreditar no que é certo, não importa quantas barreiras apareçam em seu caminho!
Artonnis olhou profundamente para o avô e respondeu sorrindo:
– Em nome de tudo quanto exista de mais sagrado sobre está terra e além dela, eu lhe prometo que jamais deixarei que meus sonhos pereçam!
Ellinord inspirou novamente e perdeu-se na beleza do sol poente. Adormeceu junto com o cair da noite e não mais acordou.

(escrito por Zephyrus, 1998)

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