Herança.
Cultura. Tradição. Todas palavras com um significado muito particular
para os Sangre Cavallum. Para perceber melhor o que significam e para
discutir os seus dois mais recentes trabalhos, falamos com B. Ardo, o
motor criativo de uma das melhores bandas folk portuguesas.
Foi num Inverno há dez anos atrás. O interesse pela música como elemento mágico e criador vinha dos anos 80 onde todos tivemos experiências diversas. O passo para Sangre Cavallum deu-se pela necessidade de cantar a Callaecia, cantar a nossa terra e as suas tradições. Para o efeito começamos a usar instrumentos tradicionais em bárbaro convívio com os modernos equipamentos de hoje. Juntámo-nos pela luta espiritual que nos une e pela vontade de percorrer o nosso próprio caminho. Assim quisemos criar a nossa música sem vassalagem às imposições culturais, leia-se genocídio cultural, das sociedades modernas.
A nível musical, os membros da banda têm formação académica na área ou aprenderam sempre com base na prática?
Apenas um elemento, a Corinna Ardo, tem formação clássica de piano, instrumento que por ora raramente usámos. Tal como eu, os restantes elementos (Jorge Ricardo, R. Coutinho, A. Rangel e Emanuel Melo da Cunha) são autodidactas ou com alguma formação tradicional. Somos oriundos de áreas como o rock alternativo de 80, o punk, a música experimental ou o folclore minhoto.
Quais são as principais referências e influências na sonoridade de Sangre Cavallum?
Concerteza que fomos influenciados por bandas como Death in June, Sol Invictus ou Joy of Life, ou ainda Joy Division, And Also the Trees, Test Department ou Bauhaus. Do lado do folk os eternos Malicorne, Banda do Casaco, Milladoiro, Steeleye Span ou Alan Stivel. Contudo, parece-nos que a maior influência, aquando na formação da banda, veio dos grupos de gaiteiros mirandeses, dos pastores, dos cantares de trabalho e dos arrepiantes grupos de Zé-pereiras que muito estimámos desde do Vale do Sousa ao Alto-Minho.
E qual o papel do folclore tradicional nos vosso trabalhos?
Há elementos tradicionais do Norte de Portugal e da Galiza que se podem detectar na nossa música. Outros são mais sublimes ou até se encontram ocultos no interior dos temas. Não há uma preocupação excessiva quanto à autenticidade. A tradição é uma sementeira viva e criadora, cada intérprete vai acrescentando a sua marca e os elementos da sua realidade e da sua memória. Não fazemos música de época, podemos perfeitamente combinar um instrumento com 150 anos e um qualquer software e daí resultar uma canção. A tradição não é uma relíquia dentro de um armário, é antes um fogo vivo.
É
notável a quantidade de instrumentos utilizados na criação da vossa
música. Quão importante é o seu papel no contexto de Sangre Cavallum,
musicalmente e socialmente?
Cada instrumento conta uma história. De cada um brota uma musicalidade, uma linha melódica que muitas vezes não se inventa noutro instrumento. Há uma riqueza tímbrica que não se repete e que advém das madeiras, do construtor e da vida a que o instrumento esteve sujeito. Normalmente preferimos os instrumentos em segunda-mão ou então feitos à nossa medida nos nossos amigos construtores – que nas mãos gretadas guardam magias antigas, música e tradição.
Desde
a edição da vossa primeira gravação até ao primeiro álbum decorreram
cerca de 6 anos, tendo “Pátria Granítica” e “Barco do Vinho” saído 2
anos depois. Foram-se tornando mais produtivos ao longo dos anos?
Os lançamentos não são prioritários, temos outros interesses ligados à música que não passam pelo registo sonoro e pela sua divulgação. Sempre houve um bom ritmo de trabalho e o nosso arquivo é hoje muito extenso, é o nosso maior património. Nessa altura gravámos mais dois álbuns não editados e outros temas para lançamentos futuros. A explicação é simples, não trabalhámos sob qualquer pressão editorial. Há apenas a vontade autónoma de editar, ou não, em determinadas datas e circunstâncias.
Com dois trabalhos lançados no mesmo ano, quais são as principais diferenças entre eles?
A maior diferença reside na temática. As diferenças musicais em nada nos inquietam, fazemos sempre o que gostámos. O facto de haver um cruzamento entre os dois projectos não altera o processo criativo. Conhecemo-nos bem e sabemos como cada projecto trabalha. Em termos de gravação há algumas diferenças. Houve partes que foram gravadas presencialmente enquanto outras se dependeram da troca postal.
Todo
o conceito lírico de “Pátria Granítica” gira em redor do legado
histórico dos nossos antepassados. Quais serão as características
principais desses tempos que não consideram existir actualmente?
Honra, fidelidade, intolerância e protecção familiar são elementos de uma visão que gira em redor do combate perpétuo, ao serviço da raça e da terra, e nunca em redor da paz podre e artificial do materialismo cristão. Estes e outros elementos elevam o sentir comunitário. Outra das verdades esquecidas é o encarar a morte com a dignidade de um triunfo, de uma vitória. Todos estes valores devem ser transmitidos aos nossos filhos em forma de glosa heróica ou canções evocativas, assim se faz da música e do lirismo, verdadeiros fachos do espírito. O actual e fastidioso chorrilho humanista é apenas ruído para os nossos ouvidos.
E porquê a temática do Vinho como catalisador da inspiração do split com Allerseelen? Era uma ideia já a pairar há muito tempo?
Sim, a ideia foi fermentando durante algum tempo e na altura certa começamos a trabalhar. O vinho encerra muito de mágico e de comunitário. Fazer o vinho é um trabalho que une a fertilidade da terra e a arte e força dos homens.
Qual foi a principal motivação para a publicação deste split?
A
vontade de trabalhar em conjunto e a admiração pelo vinho levou-nos a
pensar neste trabalho. Há muitos gostos e aspirações comuns daí que seja
sempre provável que nasçam ideias conjuntas. A colaboração entre
projectos não é prova de qualquer aliança ou pacto, é a prova de que
ombro a ombro se caminha firmemente.
Sendo
os Allerseelen uma banda Austríaca, foi difícil para eles
enquadrarem-se numa temática tão nossa como a cultura vinhateira do
Norte de Portugal, especificamente a relacionada ao Rio Douro?
A
cultura do vinho é algo transversal aos Europeus, sobretudo aos que
cultivam o gosto pela terra. O Douro, pela sua sedução natural,
facilmente se enquadrou nas buscas de Allerseelen. O próprio Gerhard
teve oportunidade de visitar e de se deixar encantar pelo Douro e os
seus vinhos.
“Barbara
Carmina” foi lançado pela Storm/Tesco mas “Pátria Granítica” e “Barco
do Vinho” pela Ahnstern/Steinklang Industries. Houve alguma razão
especial para a mudança?
Não
houve qualquer problema com a Storm e continuámos a ter projectos
comuns para edições futuras. No entanto, para o volume de trabalho que
se avizinha é mais adequado trabalhar com a Ahnstern. Trata-se apenas de
gostarmos de trabalhar com amigos, o que acontece em ambas as editoras.
Estão satisfeitos com o trabalho de promoção feito até agora pela Ahnstern?
O
trabalho com eles agrada-nos em todos os sentidos. A promoção é
suficiente, a distribuição funciona bem e não há qualquer pressão ou
solicitações indesejáveis. O que importa é estar longe das demandas dos
mercados, das estéticas da artificialidade e, sobretudo, não engraxar
botas que não as nossas.
Acaba
por ser curiosa a vossa relação próxima com projectos referência neste
espectro sonoro, como Blood Axis e Allerseen. Depois de terem editado
pela Storm e actuarem em Portugal com a banda de Michael Moynihan, agora
que editaram pela Ahnstern e lançaram um split com Allerseen, podemos aspirar a ver-vos tocar com a banda de Gerhard Hallstatt nos próximos tempos?
É natural que isso venha a acontecer. Existem os convites e serão ponderados.
Tocar ao vivo é uma coisa que os Sangre Cavallum têm feito raramente ao longo dos anos. É uma opção própria?
Por
nossa vontade e natureza os concertos não são prioritários. Preferimos o
silêncio do lar e o ar dos montes aos ambientes dos concertos.
Mas qual foi o vosso concerto mais especial?
Foi
no teatro romano das ruínas de Segobriga, perto Cuenca (Espanha) no
festival Arcana Europa. Tocámos sob um Sol abrasador e foi um concerto
muito dedicado à nossa terra e à nossa música de raiz. Outro aspecto que
muito nos agradou foi o facto de em frente ao palco existir uma grande e
bela estátua sem cabeça, a lembrar Portugal sem a Galiza. Por tudo
isso, foi especialmente iluminado. Contudo, os poucos concertos que
tocámos foram sempre especiais.
Há alguma banda com a qual gostariam particularmente de actuar?
Agrada-nos
muito a ideia de tocar com um vasto grupo de Zés-pereiras a assegurar a
percussão. De resto, quaisquer dos grupos nossos amigos poderão
integrar apresentações ao vivo.
É
notória a vossa aversão ao Cristianismo e orientação Pagã.
Consideram-se representantes/praticantes do Paganismo tradicional, ou
preferem manter-se alheios a questões religiosas ou filosóficas?
Não
há enquadramento possível, o melhor é mesmo não fazer parte do que quer
que seja. Por certo que somos alheios a todo este enredo social, a
todas psicoses que largamente afectam a sociedade actual. Por outro
lado, não representámos qualquer sistema ligado ao neo-paganismo ou
qualquer prática organizada. A nossa religiosidade, de culto pagão, a
nós pertence. Naturalmente que crescemos lado a lado com a Cristandade
mas cedo se substituiu a cruz ensanguentada por muitos símbolos solares,
esses que por todo o Norte encontrámos gravados nas pedras e na nossa
memória. Venha a nós o nosso reino…
Os Sangre Cavallum têm algum papel político ou social?
Não nos interessa a política, a economia e a grande conspiração que mantém apertados estes grilhões das modernas sociedades.
Mas
a passagem da mensagem de união e preservação da Callaecia é compatível
com eventuais aspirações políticas de fusão do Norte de Portugal e
Galiza num estado independente?
Não
temos qualquer interesse em novas fronteiras administrativas para a
Callaecia, novos paus-mandados no poder com a inata falta de acutilância
dos que hoje içam bandeiras. Não queremos mais do mesmo, ou seja, mais
republicanos aldrabões, vendidos aos poderes do comércio e do Santo
Lucro. Interessa-nos a unidade espiritual galaico-duriense, o
Pangaleguismo, a religiosidade arcaica, o etnocentrismo e a reposição
histórica, que Portugal não esqueça o seu Norte consanguíneo, a Galiza!
De resto, as inconsequências políticas ficam para os abutres do costume.
Quais são os planos de Sangre Cavallum para o futuro?
Para
além do muito trabalho interno, serão produzidos novos álbuns e
eventualmente algumas aparições ao vivo. A tendência será o aprofundar
deste cruzamento entre música de inspiração tradicional e as músicas
mais underground como o Industrial, o rock psicadélico
ou a música experimental. Serão efectuados alguns trabalhos com imagem
vídeo entre os muitos tributos à Callaecia, às suas fontes etnográficas e
aos tesouros da espiritualidade d’aquém e d’além Minho, a nossa terra
transduriana.
Se vos fosse dada a possibilidade de concretizar um objectivo ou desejo específico, qualquer coisa, o que seria?
Desenterrar muitas coisas e enterrar muitas mais!
(Entrevista feita em 2007)
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http://lurkersrealm.blogspot.com.br
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